Onde estão os profissionais qualificados?
A Fundação Abrinq é contrária à PEC nº 18/2011, que reduz a idade para admissão em emprego para 14 anos.
O trabalho precoce acarreta diversas consequências, desde físicas até psicológicas, que podem se perpetuar por toda a vida. A criança que trabalha pode apresentar cansaço excessivo, distúrbios de sono, irritabilidade, alergias e até problemas respiratórios. Também são comuns casos de amputações, fraturas, ferimentos com objetos cortantes e até queimaduras. As consequências psicológicas e sociais podem se manifestar na capacidade de aprendizagem, no abandono escolar e até na forma da criança se relacionar. Ao ser exposta ao trabalho infantil, a criança também fica vulnerável a diversas outras violações como abusos físicos, sexuais e verbais, fatores que levam a sérias doenças físicas e transtornos mentais como a depressão e baixa autoestima.
Ainda, é necessário pontuar que o mercado de trabalho busca profissionais qualificados, há vagas que exigem nível de conhecimento técnico, e adolescentes que não concluíram o ensino médio e não passaram pelo processo de formação profissional não preenchem tais requisitos. A discussão que deve ser feita é quais medidas econômicas e quais reformas são necessárias para gerar postos de trabalho para aqueles que têm idade para trabalhar, que têm qualificação profissional, e estão desempregados.
Também é necessário abandonar argumentos como o de que é melhor o adolescente estar trabalhando do que estar nas ruas, exposto à criminalidade, à violência e às drogas, pois há inúmeras ocupações necessárias para o desenvolvimento integral do adolescente, garantindo-lhe um melhor futuro, no lugar do trabalho precoce: é essencial que esteja na escola, que realize e participe de atividades culturais, esportivas, de complementação à escola, dentre outras.
Marta Volpi, assessora de políticas públicas da Fundação Abrinq
Avanços e Retrocessos
A lei – especialmente a Constituição Federal que é a norma mais importante da nossa sociedade – deve garantir avanços sociais e não retrocessos. Atualmente, nossa Constituição Federal proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 e qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos.
Nesse contexto, a eventual alteração da idade mínima para o trabalho, ainda que a tempo parcial, é um retrocesso social. Fere a própria Constituição Federal que tem como fundamento a dignidade humana.
O limite imposto pela Constituição Federal é a garantia mínima e essencial da preservação da pessoa de 14 anos e do seu desenvolvimento físico e mental. Tal a importância do tema, que já temos sedimentado na nossa legislação o Estatuto da Criança e do Adolescente que visa à proteção da criança, considerada pessoa até 12 anos incompletos e o adolescente, considerada a pessoa entre 12 e 18 anos de idade.
A efetiva proteção de crianças e adolescentes é essencial para garantir o desenvolvimento adequado de uma sociedade e várias entidades buscam a efetivação desta proteção. A Organização Internacional do Trabalho, por exemplo, indica que “o trabalho infantil é causa e efeito da pobreza e da ausência de oportunidades para desenvolver capacidades. Ele impacta o nível de desenvolvimento das nações e, muitas vezes, leva ao trabalho forçado na vida adulta” e por isso é um dos temas prioridades de sua atuação, sendo, inclusive objeto de 2 Convenções a nº 138 e a nº 182.
Beatriz Tilkian, advogada trabalhista do escritório Gaia Silva Gaede Advogados
Consequências Físicas e Psicológicas
O trabalho infantil é uma grave violação dos direitos de crianças e adolescentes e com consequências físicas e psicológicas que perduram ao longo da vida adulta. Crianças e adolescentes morrem por conta do trabalho infantil! Entre 2007 e 2019, no Brasil, 279 crianças e adolescentes de 5 a 17 anos morreram e 27.924 sofreram acidentes graves enquanto trabalhavam. A faixa etária mais atingida é a de 14 a 17 anos, com 27.076 notificações. Os adolescentes estão entre os que mais sofrem acidentes em membros superiores e inferiores, cabeça, mãos e pés, por exemplo.
O trabalho infantil reproduz o ciclo de pobreza, mantém a desigualdade e a exclusão social. O perfil do trabalho infantil no Brasil evidencia que boa parte das crianças e adolescentes que trabalham são pobres, pretas ou pardas. Há, portanto, um forte recorte de cor e classe social.
A redução da idade mínima para o trabalho viola cláusula pétrea da Constituição Federal, retrocede o que já está previsto na legislação brasileira, contribui para o aumento do desemprego, da informalidade e do subemprego, infringe o princípio da proibição de retrocesso social e da proteção integral e prioritária.
Apesar de proibido no Brasil, ainda há 1,8 milhão de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, em situação de trabalho infantil. Destes, 950 mil tinham 16 e 17 anos, 442 mil tinham entre 14 e 15 anos e 337 mil eram crianças de 5 a 13 anos. O Relatório Luz evidencia que a meta 8.7, que prevê o fim do trabalho infantil até 2025, está em retrocesso.
Em um país com quase 14 milhões de desempregados e 18 milhões de brasileiros passando fome, o tema na agenda política certamente deveria ser outro. Entretanto, o que vemos é a ala governista trazendo uma pauta que, já em outras legislaturas, foi arquivada devido à sua inconstitucionalidade.
Definitivamente o Estado brasileiro precisa assumir a sua responsabilidade no combate ao trabalho infantil, previstos na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como os compromissos assumidos internacionalmente ao ratificar a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Tânia Dornellas, cientista política, especialista em políticas públicas e assessora do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).
Crescimento, desenvolvimento, aprendizagem, depois trabalho
O Brasil tem realizado avanços estratégicos na implementação dos direitos infantojuvenis, em função do crescente alinhamento da legislação e das políticas públicas com as bases científicas sobre desenvolvimento humano e socioeconômico, que passaram a ser largamente divulgadas a partir de 2012, quando a Frente Parlamentar da Primeira Infância estabeleceu parcerias para formação de lideranças na Universidade de Harvard. Por exemplo, as neurociências confirmaram a importância da prioridade de cuidados na primeira infância, por ser a fase na qual se forma a arquitetura cerebral, a partir das primeiras experiências e nutrientes acessíveis às gestantes, crianças, pais e seu entorno, que impacta todo ciclo da vida. Isso levou à criação da Lei 13.257/2016, conhecida como o Marco Legal da Primeira Infância, que em 2019 ensejou um Pacto Nacional, sob coordenação do Conselho Nacional de Justiça, o qual já reúne quase 300 signatários em prol da implementação de direitos fundamentais para um desenvolvimento sustentável desde o começo da vida.
A partir dos avanços científicos, constatou-se que os primeiros anos de vida são a maior janela de oportunidade para promoção do desenvolvimento integral. Isso foi inclusive demonstrado matematicamente pelo Prêmio Nobel em Economia, James Heckman, que provou que não há outro investimento mais rentável que um País possa fazer. É a partir da promoção da formação humana saudável que se evitará gastos com doenças crônicas, evasão escolar, criminalidade, falta de produtividade e assim por diante.
Mas ainda se fala pouco sobre a segunda maior janela de oportunidades identificada pelas neurociências: trata-se da adolescência e da juventude – corroborando o sentido da prioridade absoluta de garantia dos direitos das crianças, adolescentes e jovens, trazida pelo artigo 227 da Constituição Federal.
Nesses períodos estratégicos do desenvolvimento são formadas habilidades complexas, chamadas de funções executivas, que possibilitam capacidades como autocontrole, flexibilidade cognitiva, tomada de decisão e responsabilidade, que tanto mais se desenvolvem quanto melhores ambientes afetivos, protetivos, educacionais e tempo investido na aprendizagem são proporcionados.
Com as ciências aprendemos que há uma ordem na formação do ser humano, em que se entrelaçam sequencialmente: crescimento, desenvolvimento e aprendizagem, especialmente nas etapas estratégicas do ciclo vital que são a infância, adolescência e juventude. Antecipar a etapa do trabalho no período oportuno para a aprendizagem significa previsivelmente antecipar o subdesenvolvimento humano e, por consequência, enfraquecer a formação do capital humano, que é a principal base do desenvolvimento de nossa Nação.
Diante disso, de forma inédita, o Poder Judiciário, em seu 15º Encontro Nacional, realizado neste último dia 2 de dezembro, pelo Conselho Nacional de Justiça, aprovou pela primeira vez metas para garantia dos direitos infantojuvenis, entre elas que a Justiça do Trabalho em todo País, promova pelo menos uma ação visando ao combate ao trabalho infantil.
Ivânia Ghesti, doutora em psicologia clínica e cultura pela UnB, especialista em justiça da infância e juventude pela Universidade de Gênova e líder executiva em desenvolvimento da primeira infância pela Universidade de Harvard, atua como analista judiciária no Conselho Nacional de Justiça.
Sem pular etapas
De forma geral, o trabalho infantil está mais concentrado na faixa entre 14 e 17 anos e afeta os meninos e as meninas de forma diferente. É mais frequente ver meninos trabalhando nas ruas, vendendo produtos nos semáforos, ou no campo, em colheitas. Já as meninas são as maiores vítimas de trabalho infantil doméstico – 94% de todo o trabalho infantil doméstico é feito por elas, de acordo com o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil – FNPETI. O trabalho infantil tem ainda consequências graves, como o abandono escolar, doenças, e afeta o desenvolvimento integral e harmônico de crianças e adolescentes. Esse cenário nos leva a pensar que uma proposta de modificação na legislação como essa vai na direção contrária do que realmente precisamos, que é fortalecer a lei de aprendizagem, garantindo que adolescentes possam ter respeitado seu momento peculiar de desenvolvimento que deve priorizar o aprendizado e o desenvolvimento integral e não queimar etapas, como é o trabalho fora desse contexto de aprendizagem. O que precisamos é fortalecer o cumprimento de nossa legislação e de nossas políticas públicas e garantir que nossas crianças e adolescentes sejam de fato, PRIORIDADE ABSOLUTA!
Flavio Debique, gerente nacional de programas e incidência da Plan International Brasil
Fonte: Correio Braziliense