Em um atual contexto de grande luta contra o trabalho infantil no Brasil, sobretudo pelas recorrentes e recentes atuações dos Governo Federal, necessário observar quais são as medidas concretas para o combate no trabalho precoce na infância, além das ações de conscientização na sociedade.
Os dados mais recentes da OIT e do UNICEF revelam que, pela primeira vez, em 20 anos, houve uma estagnação na redução do número de crianças em situação de trabalho infantil globalmente. Em 2020, 160 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos eram vítimas de trabalho infantil no mundo (97 milhões de meninos e 63 milhões de meninas). Isto significa que 1 em cada 10 crianças e/ou adolescentes ao redor do mundo se encontrava em situação de trabalho infantil.1
Essa realidade, historicamente, ocorre de forma majoritária em famílias em situação de vulnerabilidade econômica, pois, além da baixa fiscalização, há uma redução nas oportunidades de escolha, o que também influencia no enfraquecimento da escolaridade e qualificação de muitos jovens.
A urgente necessidade de um complemento de renda para auxílio no sustento familiar influi na remota expectativa de uma especialização técnica para diversos nichos da sociedade, além do aumento no trabalho precoce.
Por outro lado, discute-se cada vez mais a exposição infantil na internet e os chamados “influencers mirins”, que não necessariamente vêm de famílias em situação de vulnerabilidade, contudo, tornam-se fontes de renda aos responsáveis legais, com contratos empresariais e responsabilidades publicitárias abaixo da idade mínima estabelecida no país.
Para esse tipo de trabalho, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) previu a necessidade de autorização judicial, com a ressalva de que o trabalho artístico deve ter cunho educativo e não poderá prejudicar a formação moral da criança e do adolescente.
De toda sorte, observa-se que há uma discussão acerca do momento em que há uma atividade profissional, cuja sociedade vem enxergando de forma cada vez mais natural e legítima a inserção de crianças no mercado digital.
Medidas concretas
O trabalho infantil não é facilmente detectado pelos órgãos responsáveis. Seguindo o art. 227 da Constituição Federal, o dever de assegurar a proteção à criança e ao adolescente pertence à sociedade civil, a qual deve ligar para o Disque 100 – canal que encaminha os casos para a rede de proteção ou acessar a página de denúncias do Ministério Público do Trabalho na internet sempre que tiver ciência de casos relacionados.
Frise-se que as ações de conscientização têm ocorrido a partir de diversas parcerias institucionais, o que contribui para o acesso à informação em múltiplas áreas da sociedade, mas ainda não se mostra suficiente.
No âmbito da Justiça do Trabalho, durante o decurso do mês junho, a partir de provocação do Ministério Público do Trabalho, houve a promoção de um mutirão de julgamentos de processos que versavam sobre trabalho infantil e aprendizagem profissional.
A iniciativa visou impulsionar o tratamento dos temas como prioridade no Judiciário, conforme recomendação da própria Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho. A pauta temática fez parte de articulação feita entre a Coordenadoria de Combate ao Trabalho Infantil e de Promoção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, além do Ministério Publico do Trabalho e o Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho do Tribunal Superior do Trabalho.
Implicações a serem observadas na prática
O trabalho infantil encontra um cenário favorável nas famílias de baixa renda em razão da pobreza familiar. Nesse contexto, não há efetividade em proibir o trabalho infantil sem promover medidas de combate à fome e a miserabilidade, além de opções para as crianças e adolescentes se dedicarem durante o dia.
Com efeito, uma das propostas do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome é a escola integral para promover um local de desenvolvimento completo, com uma alimentação nutritiva promovida pela instituição, além de proteger as crianças e melhorar as condições de trabalho dos pais e provedores. Para isso, deve-se garantir que as famílias estejam sendo atendidas por, pelo menos um dos aparatos sociais disponíveis.
É certo que as crianças e adolescentes ficam expostos a diversas outras violações quando estão passando por situações de necessidade, o que pode ser o meio ensejador para trabalhos escravizados, exploração sexual, trabalho nas ruas e logradouros públicos, trabalhos insalubres, entre tantas outras circunstâncias que abalam a saúde, a segurança e a moral infantil, o que deve ser combatido com prioridade.
Para promover o enfrentamento a tais situações, todas as entidades da sociedade civil e órgãos públicos devem buscar ativamente ações para identificação e resgate de crianças em situação de trabalho proibido.
Cabe ressaltar, ainda, que, na prática, os casos não têm sido priorizados como deveriam, tendo diversos exemplos práticos de denúncias que foram postergadas por muitos anos. Em 2010, por exemplo, cerca de 30 estabelecimentos na cidade de Barra do Bugres (MT) foram identificados com situações de flagrante exploração infantil3. Após mais de 10 anos de andamento, o resultado foi alcançado no dia 03 de maio de 2023, com a homologação de um acordo em audiência na 1ª Vara de Tangará da Serra.
No caso ora referido, embora o acordo firmado em audiência preveja uma série de obrigações assumidas pelo município de Barra do Bugres, as crianças e adolescentes que foram localizados em flagrante situação de ilegalidade não eram mais o objeto principal da decisão. Ainda assim, entre os compromissos pactuados, os gestores se comprometeram a realizar a capacitação dos conselheiros tutelares e profissionais dos centros de assistência social como CRAS e CREAS. Os cursos deverão alcançar os profissionais da saúde e educação para capacitá-los a identificar e atender crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil.
Veja que a efetividade das medidas de enfrentamento dependerá da regular colaboração de todos os setores envolvidos, para que as crianças e adolescentes envolvidos sejam alcançados em tempo e a tempo de serem resgatadas a uma infância e desenvolvimento educacional saudável.
O combate repressivo é imprescindível, mas o preventivo será fundamental para evitar as futuras situações. Cabe prevenir que uma sociedade que não cuida das suas crianças, não conseguirá cuidar de si própria no futuro.
As novas formas de trabalho
Nos últimos anos, novas formas de trabalho surgiram no Brasil e no mundo, o que traz para os órgãos regulamentadores um enorme desafio a ser debatido e enfrentado no âmbito jurídico. Não por outra razão que as plataformas digitais cresceram exponencialmente como um novo meio de trabalho, sobretudo por meio de redes sociais, plataformas de jogos, músicas, vendas e sites de compartilhamento de vídeos.
Neste contexto, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê a necessidade de autorização judicial para os menores de idade, com a ressalva de que o trabalho não possa prejudicar a formação moral da criança e do adolescente. E discussão se inicia em saber qual seria o momento em que deixa de ser um simples compartilhamento na internet e passa a ser um trabalho.
Em um consenso, a profissionalização se dá quando existem práticas publicitárias, o que, por si só, já caracteriza um trabalho infantil artístico em que há necessidade de autorização judicial.
Ocorre que, para algumas instituições, assim que há exposição da criança com regularidade em sua vida cotidiana, ainda que com publicidades indiretas, já seria necessário requerer as providências judiciais cabíveis3.
A título de exemplo, em dezembro de 2018, o Ministério Público de São Paulo moveu uma ação civil pública contra a empresa Google, a qual culminou na assinatura de um acordo da instituição prevendo, entre outras medidas, a produção de materiais sobre educação digital preventiva, o que não existia ainda em nenhum outro lugar no mundo4.
A educação digital preventiva é, por certo, um excelente resultado. Contudo, tratando-se de crianças em exposição, não seria demais destacar a necessidade de um controle preliminar das plataformas aos conteúdos de riscos da internet. Hoje, aliás, o art. 29 do Marco Civil da Internet (lei 12.965/2014) prevê a fiscalização dos conteúdos acessados apenas aos pais e responsáveis.
Sendo a internet instrumento de trabalho dos menores, existem algumas discussões a serem debatidas, tais como jornada de trabalho, monetização, comprovação do uso do dinheiro a favor da criança, exposição dos menores a conteúdos gerados para adultos e o regular desenvolvimento escolar.
Além de tais questões, deve-se considerar, ainda, o direito à intimidade e à privacidade do menor e de seus dados pessoais, o que, no ambiente digital, engloba a própria identidade digital das crianças.
A única regulamentação sobre o assunto está no art. 14, caput, e §1º da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (lei 13.709/18), que preveem que o tratamento de dados infantis deve ser realizado no melhor interesse da criança e com o consentimento específico de, pelo menos, um dos responsáveis legais.
Atualmente, a regulamentação sobre o trabalho infantil na internet é um tema polêmico internacionalmente, tanto que a França foi o único país a estabelecer regras claras e expressas (Lei 2020-1266) até o presente momento5.
Pela nova lei francesa, por exemplo, algumas plataformas passaram a ter formas autorizadas de trabalho infantil, além de terem sido instituídas novas regras acerca do destino da renda das publicações, que deverão ser depositadas em contas exclusivas para acesso do próprio menor após a maioridade legal, além do estabelecimento de horários para que não sejam afetados os estudos e desenvolvimento saudável da criança.
Em relação à preservação da imagem, a norma estrangeira estabeleceu que a criança poderá pedir a completa exclusão do conteúdo das plataformas, o que, para alguns opositores, é uma medida completamente utópica, conquanto abra espaço para uma discussão acerca do direito à não manutenção da sua imagem vinculada a compartilhamentos feitos em período anterior ao completo desenvolvimento e maturidade cognitiva.
Por fim, a lei francesa também instituiu normas para combate à exploração ilegal da imagem dos menores.
Conclusão
Evidente a necessidade de enfrentamento do trabalho infantil por todos os setores da sociedade civil. O trabalho precoce apresenta sequelas no desenvolvimento psicológico e educacional das crianças de modo que suas consequências se apresentam no remoto proveito no desenvolvimento técnico profissional, além dos impactos traumáticos e sociais.
O ambiente educacional foi instituído não apenas para o desenvolvimento profissional do indivíduo, possuindo uma grande influência sobre a evolução técnica e emocional da criança e do adolescente.
Uma das justificativas para a factível existência de diversos focos de trabalho infantil no país é a complementação da renda doméstica, o que abre o debate para a implementação efetiva das medidas de combate à fome e a miserabilidade, além de opções para as crianças e adolescentes permanecerem durante o dia com atividades legítimas e alimentação escolar.
De mais a mais, o Brasil e o mundo vêm passando por profundas mudanças nas formas de trabalho, o que também deve ser acompanhado pelas leis vigentes de proteção à infância.
Em observação ao que já está ocorrendo na Europa, é o momento de iniciar o debate sobre a jornada de trabalho infantil na internet, monetização e o desenvolvimento saudável dos profissionais mirins nas plataformas digitais.
Em arremate, caberá aos órgãos judiciais e regulamentadores, para além de toda a sociedade civil, a priorização do tema para que as crianças e adolescentes envolvidos sejam alcançados a tempo de manter ou recuperar um desenvolvimento educacional e emocional saudável. Não há como a coletividade estar protegida no futuro se as crianças estiverem desprotegidas agora.
Fonte: Migalhas