Rede Peteca: escolas como ferramenta de combate ao trabalho infantil

Em 14 anos de existência, a Rede Peteca – Prevenção e combate ao trabalho infantil, projeto desenvolvido pelo Ministério Público do Trabalho do Ceará (MPT-CE), transformou a vida de crianças e adolescente, permitindo que houvesse diminuição significativa no número de casos de trabalho infantil. Vencedor do Prêmio Prioridade Absoluta, que está em sua segunda edição, na categoria Sistema de Justiça, o projeto idealizado e coordenado pelo procurador do trabalho Antonio Oliveira de Lima permitiu que houvesse redução de mais de 70% nos casos de trabalho infantil no estado ao envolver as escolas, mais especificamente os professores, no combate a esse tipo de exploração, no Ceará.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2009, primeiro ano de execução do programa, apontavam para a existência de aproximadamente 293 mil casos no estado. Em 2019, quando ocorreu o último levantamento da pesquisa, esse número caiu para cerca de 82 mil. O Peteca conta com a participação direta dos atores(atrizes) da comunidade escolar, e nas ações que se ampliam a partir do programa, em campanhas maiores de combate ao trabalho infantil. Durante a execução do programa foram incluídos outros segmentos como os profissionais da área da assistência social, Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), conselheiros(as) tutelares, e da área da saúde.

Desde sua concepção, o projeto centrou esforços na inclusão da rede de ensino como ferramenta de combate ao trabalho infantil. “A escola sempre foi a principal estratégia por se tratar do equipamento de política pública mais presente no dia a dia das crianças, com cerca de 200 dias letivos por ano. Os professores são profissionais que podem dar contribuição muito grande na prevenção à exploração do trabalho infantil”, defendeu o procurador.

Foi por meio do programa que os professores puderam identificar os casos de trabalho infantil e agir pontualmente na reversão do quadro. “Os professores atuam por meio da observação da realidade dos alunos, articulando com a rede de proteção para assegurar um futuro diferente a essas crianças e esses adolescentes. E, o mais importante, sem perpetuar a visão do senso comum que permite o reforço de mitos como ‘o trabalho enobrece’, ‘é melhor trabalhar do que roubar’, entre tantos outros”, afirmou Antonio.

Na avaliação do procurador, o professor ou a professora, como agente de transformação, pode não apenas trabalhar na conscientização, como também na articulação, na mobilização e na solicitação do auxílio da assistência social, do Conselho Tutelar, e de outros atores para ajudar crianças em situação de trabalho infantil.

Ao longo dos anos, o trabalho da Rede Peteca vem recebendo reconhecimento por parte de entidades ligadas ao Judiciário, como o CNJ, e à luta trabalhista e de organismos internacionais como a Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Muito importante unir todos os segmentos da sociedade. É fundamental que essa mensagem chegue para mais pessoas”, disse.

Trabalho como vivência

Além de ter vivenciado o trabalho em sua infância, o procurador também experimentou o engajamento da escola, que foi preponderante na garantia de melhores condições. Filho de trabalhadores rurais, Antonio era o quinto de uma família de oito irmãos. Desde pequeno, Antonio e seus irmãos já sabiam que as crianças estavam destinadas a trabalhar e ajudar no sustento de suas famílias. Dos 5 aos 12 anos realizou atividades agrícolas em pequenos afazeres domésticos, passando pelo plantio e pela colheita até que o trabalho rural fosse inteiramente incorporado em sua rotina.

O trabalho foi conciliado com os estudos até 1983, quando aos 13 anos de idade, foi obrigado, juntamente com seus irmãos, a abandonarem a escola devido ao agravamento de uma grande seca que assolava o Ceará na época. “Meu pai nos procurou para compartilhar sua preocupação com o trabalho na lavoura e a falta de condições de comprar os materiais escolares dos filhos. No primeiro dia de aula daquele ano, não fomos para a escola. Já no dia seguinte, a professora esteve em nossa casa para entender o motivo da nossa ausência e ela o convenceu a comprar, na mercearia, um caderno e um lápis fiado e nos manter na escola. A presença dela e todo o trabalho de conscientização que a professora Marlineide fez junto ao meu pai nos salvou. A atitude da professora tem um significado muito grande, a mesma iniciativa que hoje é a base da Rede Peteca”, ressaltou.

Antonio destaca que, para uma criança que trabalha, o aprendizado é menor, pois tem menos tempo para estudar, menor disposição. “Por cair o rendimento, a evasão escolar é mais comum entre as crianças que trabalham. Se o aluno não consegue aprender por essa gama de fatores, a escola se torna um lugar difícil. Se os pais não têm essa consciência, a percepção é que a criança ou o adolescente tem mais aptidão para o trabalho que para o ambiente escolar, o que reforça os mitos”, afirmou.

Diferença regionais

A questão cultural é um dos fatores que, segundo o procurador, mais influenciam na elevação do número de trabalhadores infantis por região. Antes recordista nas estatísticas que medem a realidade da exploração do trabalho de crianças e adolescentes, a região Nordeste, mesmo com altos índices de desigualdade social, passou por um processo nos últimos dez anos de redução no número de casos.

Embora ainda tenha um número de trabalhadores alto em função do tamanho da população, os índices do Nordeste caíram em uma proporção maior que a nacional. “As maiores taxas, hoje, estão concentradas nas regiões Norte e Sul. Na região Sul, por exemplo, embora o nível socioeconômico seja mais alto, ainda imperam os valores morais associados ao trabalho, com apego aos mitos relacionados ao trabalho infantil”, afirmou Antonio. Para ele, o enfrentamento do trabalho infantil pelos aspectos culturais, é mais necessário em algumas localidades como a região Sul e parte da região Sudeste, especialmente no interior dos estados de São Paulo e Minas Gerais.

Os dois lados da luta

Fátima Silva, professora da Rede Municipal de Ensino de Pacajus, no Ceará, é uma das docentes que estão comprometidas com o programa. Por meio do seu trabalho com turmas do 1º ao 5º ano da escola João de Castro e Silva, Fátima viu, no projeto Peteca, oportunidade para ir além dos “muros da escola” e atuar como agente de transformação. “Conheço o programa Rede Peteca há muitos anos, e já faz algum tempo que participo ativamente do projeto em diversas ações. A educação é um caminho necessário a ser percorrido para que possamos ter uma vida digna”, frisou.

Para a professora, o programa Peteca veio ao encontro de antigos anseios ao possibilitar o crescimento dos alunos a abertura de novos horizontes. Com as ações executadas pelo programa, a professora passou a explorar outras potencialidades dos alunos. “Tive de trabalhar com eles a questão da autoestima, valores, ajudando-os a expandir suas habilidades. O Prêmio Peteca, voltado para o fomento da participação de crianças, adolescentes e professores nas ações de mobilização, conscientização e prevenção do combate ao trabalho infantil, é um bom exemplo disso. Ele reconhece e divulga os melhores trabalhos literários, artísticos e culturais produzidos pelos alunos e professores. No ano de 2021, nossa escola foi o primeiro colocado na categoria ‘conto’. Além de ficar entre os primeiros da categoria música”, exemplificou.

No ano de 2022 a escola implementou um projeto em conjunto com as mães, que se envolvem nas atividades escolares dos filhos. “Isso faz que as crianças se sintam representadas. As crianças ficam muito orgulhosas ao verem os pais participando das atividades do programa com eles”, lembrou.

Houve também mudanças significativas na vida de alunos como Felipe Caetano, que dos 8 aos 14 anos de idade trabalhou nas praias de Arquiraz (CE) e tornou sua experiência de luta pessoal na criação do Comitê Nacional de Adolescentes na Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Conapeti), projeto que recebeu menção honrosa no Prêmio Prioridade Absoluta (2022), na categoria Sistema de Justiça. Como estudante de Direito da Universidade Federal do Ceará, Felipe buscou o Ministério Público ainda na adolescência para a criação de comitês específicos contra a violação de direitos de jovens e crianças. “Nossa intenção era criar um coletivo que ajudasse autoridades como o Ministério Público do Trabalho a pensar em estratégias, porque ninguém é melhor para falar sobre trabalho infantil do que as crianças e os próprios adolescentes. A ideia era colocar os sujeitos de direitos para falar sobre esses direitos. Era de fato o empoderamento seguindo a lógica do ‘nada para nós, sem nós’”, declarou.

A exemplo dos passos da Rede Peteca, o Conapeti também saiu do Ceará para o Brasil, chegando a representar o Brasil em uma reunião do Conselho Executivo da Unicef, na Organização das Nações Unidas (ONU) em 2019. Em abril de 2021, Felipe discursou em um encontro promovido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Em todas as oportunidades falei sobre os prejuízos que o trabalho infantil causa à economia, à sociedade, à educação, bem como da responsabilidade desses países de erradicar o trabalho infantil”, salientou.

Felipe atualmente se prepara para ingressar, em um futuro próximo, na carreira de procurador do trabalho depois de ter sua vida transformada pela Rede Peteca. “Assim como os procuradores do Trabalho puderam me tirar do trabalho infantil, pretendo ajudar outras crianças e adolescentes a superar problema semelhante. O meio de justiça pode e deve ser um meio para erradicar o trabalho infantil”, ponderou.

Peteca em números

Em 2021, a Rede Peteca, somente no estado do Ceará, atendeu 100 municípios, envolvendo 1.665 escolas, 12.661 professores e professoras e 251.128 alunos e alunas. Nos demais estados, a Rede assume o nome de MPT na Escola e, em uma perspectiva geral, o projeto já alcança 370 municípios, 4.810 escolas, 49.107 professores(as) e 714.359 alunos(as). No Ceará, onde o projeto nasceu, a Rede se expandiu, permitindo que outros temas fossem agregados como bullying, gravidez na adolescência, castigos físicos, a prevenção ao suicídio e leis como Maria da Penha.

Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, foram alguns dos estados que receberam o programa, com uma meta de inclusão de quatro municípios por estado. A partir de 2015 o número de municípios foi crescendo e, em 2022, o projeto já é executado em mais de 20 estados da Federação. Os dados da Pnad de 2009, primeiro ano de execução do programa, apontavam para a existência de aproximadamente 293 mil crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, no Ceará. Em 2019, último levantamento do IBGE na Pnad, esse número caiu para cerca de 82 mil, uma redução de mais de 70%.

O que diz a lei

A lei brasileira dispõe de uma série de instrumentos legais que atuam de forma protetiva, estabelecendo barreiras à exploração laboral de crianças e adolescentes. O trabalho infantil se insere no âmbito das atividades econômicas e/ou de sobrevivência, remuneradas ou não, desenvolvidas por jovens em idades inferiores a 16 anos de idade. Ressalvada apenas a condição de aprendiz, que deve acontecer a partir dos 14 anos de idade, com frequência escolar obrigatória.

Entre 16 e 18 anos de idade, o trabalho precisa ser formal e protegido, com recolhimentos fiscais e previdenciários. Estão proibidas atividades que possam trazer riscos à saúde, à segurança e à moral. O Decreto n. 6.481, de 12 de junho de 2008, regulamenta a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), conforme o disposto na Convenção n. 182 da OIT, que traz classificações das piores formas de trabalho infantil proibidas para pessoas abaixo de 18 anos. A Lista TIP inclui 89 atividades prejudiciais à saúde e à segurança previstos e mais quatro na categoria Trabalhos Prejudiciais à Moralidade.

Texto: Ana Moura
Edição: Jônathas Seixas
Agência CNJ de Notícias

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