Trabalho infantil doméstico persiste na cultura brasileira

O trabalho infantil doméstico é uma das violações de direitos de crianças e de adolescentes mais enraizadas na cultura brasileira, sendo muito naturalizado e invisibilizado pela sociedade. Entre suas raízes estão a herança escravocrata que permanece até os dias atuais, pobreza e exclusão social, o que faz com que muitas gerações da mesma família exerçam o mencionado trabalho sem perspectiva ou oportunidades de se envolverem em outras atividades ou profissionalização. É considerado ainda uma das piores formas de trabalho infantil, que atinge sobretudo meninas negras e periféricas.

Embora muitos associem equivocadamente a prática de tarefas simples por crianças e adolescentes no dia a dia da casa às atividades que são consideradas trabalho infantil, o decreto 6481/2008 da TIP (Lista de Piores Formas de Trabalho Infantil) estabelece claramente o conjunto de atividades que caracteriza essa violação: aquelas que expõe crianças e adolescentes a sérios riscos ocupacionais às crianças, tais como movimentos repetitivos e de sobrecarga, posições não ergonômicas, tracionamento da coluna vertebral, exposição a fogo, isolamento e abusos, entre outros.

Em mais uma live parte da campanha Infância Plena, a procuradora Ana Maria Villa Real, coordenadora nacional da Coordinfância (Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente) do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ana Flávia Cavalcanti, atriz, diretora e roteirista, e Lia Rizzo, jornalista e socióloga, promoveram uma conversa sobre o tema.

Crianças cuidando de crianças

De acordo com estudo recente do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, baseado nos dados mais recentes da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), aproximadamente 84 mil crianças e adolescentes de cinco a 17 anos estavam exercendo algum tipo de trabalho doméstico em 2019. Além de desempenharem serviços domésticos (40,3%), a maioria deles trabalhava principalmente como cuidadores de outras crianças (48,6%).

Ana Maria Villa Real explicou que, mesmo dentro da dinâmica familiar, onde as crianças podem ser estimuladas a auxiliar, as atividades passadas a elas precisam ser compatíveis com a faixa etária de desenvolvimento e que não interfiram nas vivências necessárias à infância, desde a frequência escolar aos momentos de lazer e também de ócio. “Não dá para delegar a uma criança de cinco anos uma pia cheia de louça. Mas, claro, ela já pode ser estimulada a guardar seus brinquedos de forma a desenvolver autonomia e senso de cooperação e responsabilidade ”, exemplificou.

Vivências roubadas

É também entre as famílias mais vulneráveis que a oportunidade de um trabalho doméstico infantil é encarada como uma chance de acesso a melhores condições de moradia e/ou educação para os filhos. Promessas que raramente se concretizam e acabam somente por roubar a infância de crianças e adolescentes. Adicionalmente, esses trabalhadores infantis perdem ou têm enfraquecido o vínculo familiar, além de estarem expostos a abusos psicológicos e até sexuais, entre tantas outras violências.

“Há uma frase que acho emblemática. Muitas pessoas quando precisam de uma funcionária, dizem: preciso de uma menina”, comentou Ana Flávia. “Aí já está implícito que não importa quão jovem seja, a única garantia que essa menina terá será a privação de sua infância enquanto trabalha em uma casa”, completou a artista, que chegou a fazer um levantamento informal entre as mulheres de sua família e constatou que a maioria, incluindo aquelas que nasceram depois dela, se tornaram empregadas domésticas entre sete e nove anos.

Ana Maria Villa Real lembrou que a idade mínima para qualquer trabalho é de 16 anos. “Salvo a partir de 14 anos como aprendiz e com um contrato formal de emprego”, disse. “E entre 16 e 18 anos, esse adolescente só pode trabalhar com cobertura trabalhista previdenciária e desde que respeitadas as condições de segurança e que a atividade não ocorra no período noturno ou em ambientes insalubres e perigosos”, destacou. A procuradora recordou ainda o crescente número de casos em que mulheres foram encontradas em situações análogas a escravidão, depois de uma vida inteira trabalhando como domésticas em casas de famílias, dada a dificuldade de se romper esse ciclo de hiper exploração muitas vezes iniciado ainda na infância.

O enfrentamento ao trabalho infantil pelo Ministério Público do Trabalho acontece em várias frentes, incluindo exigência de políticas públicas de prevenção e erradicação do trabalho infantil, uma responsabilidade do Estado de um modo geral, especialmente dos municípios. A comunidade também pode e deve participar dessas ações, levando denúncias para o MPT, pelos canais oficiais do Ministério.

A campanha Infância Plena, iniciativa do Ministério Público do Trabalho para combate e erradicação do trabalho infantil, tem a duração de doze meses. Ao longo deste período, Vogue realiza mensalmente conversas com especialistas e autoridades sobre as questões mais críticas em relação ao tema e acerca de quais outros atores sociais precisam se engajar. Também serão veiculados conteúdos informativos em todos os títulos da Editora Globo Condé Nast e no jornal O Globo.

Visualizações: 0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *